sexta-feira, 30 de maio de 2014

longo poema seco


o sol se pôs e ela não foi embora, ficou ali pensando na vida

de costas a liberdade deliberou: ‘ai meus deus’ – assim viram os olhos da manicure;
o anarquista disse para a pirotecnista: ‘deixa ela lá para ela não se machucar’
[era noite de lua nova, muito breu]

a moça levantou a perna, pousou o pé no banco e recostou o queixo no joelho

‘tudo ali é dela’, disse o dono da venda vendo de longe, ‘menos o que ela quer’;
‘ela não quer nada’, disse a mulher do dono da venda

os pés da moça estavam vestidos de lona vermelha, ela olhou o calçado

‘nestes tempos de tanto calor ela deve estar com chulé’, disse o vigarista;
‘ela ali pensando na vida que levaria se eu a levasse dali’, fantasiou o fantasma;
‘tu não hás e logo não a levarias’, disse o guarda;
a guarda olhou para o guarda e não disse nada para a falta de assunto
que reclamou que o tempo não passava
pois desde 18&58 já era uma vida e eram apenas 19&19

o início, conforme se especulou durante os meses seguintes,
foi o mar: corpo novo e solto assim vem do mar
‘do mar e do sol, que se pôs,
o que ela deveria ter considerado, deveria ter pensado na vida
e se preparado para as suas inevitáveis calamidades’,
devaneou o decano vigário

às 19&21 a moça tirou os olhos dos pés vermelhos, o queixo do joelho e a perna do banco

vinte oito expectadores se retesaram:
‘olha! olha! o que será que ela vai fazer?’

a moça levantou-se, chacoalhou a cabeleira e suspirou um sorriso para o alto

‘que coisa mais bonita’, pensou o vendedor de rapadura, ‘uma nuvem’;
‘vento de estrela’, a mãe da doceira viu, ‘o suspiro dela’

a moça se pôs a caminho
dobrou a ponta da praia
            e sumiu 

andrejcaetano
Natsume Soseki